Mame Diarra Bousso

Neste mês de março, vamos dar início a uma série de publicações sobre mulheres afrikanas que marcaram estórias pelo continente e o mundo. Estas publicações vão começar agora e seguirão ao longo do ano. Se você tiver alguma sugestão, nos escreva para o email escolanomaddiallo@gmail.com.

Mame Diarra Bousso

Nossa primeira homenageada é Mariama Bousso – conhecida como Mame Diarra Bousso (1833-1866), uma mulher sagrada, que marcou profundamente o imaginário do povo senegalês, manancial de fé, força, resiliência feminina e amor materno incondicional.

Sokhna Diarra herdou uma forte tradição acadêmica nas Ciências do Alcorão e uma profunda piedade. Filha de Soxna Asta Wallo Mbacké e de Serigne Mouhamadou Bousso, descendente de Sayyidina Hassan.

Sob a orientação de sua venerável mãe, ela completou seu primeiro Muçhaf (escrita de memória do Alcorão Sagrado) aos 14 anos de idade. Sua vida não foi longa (faleceu com a mítica idade de 33 anos), no entanto, a ela é creditada a produção de mais de 40 exemplares do Livro Sagrado, escritos de próprio punho, por ser uma “mestra do passado” na arte da caligrafia.

Casada com Mame Mor Anta Sally, Mame Diarra Bousso teve quatro filhos, todos excepcionais. Serigne Mame Mor Diarra, o filho mais velho que rezava cem rakkas todas as noites; Cheikh Ahmadou Bamba (fundador do Mouridismo); Serigne Habîboullah e Sokhna Faty, que desapareceram durante a infância.

O advento do Xeque Ahmadou Bamba constitui a prova e a consagração da dimensão espiritual de Sokhna Diarra.

na cidade-santuário de Porokhaine, existe uma grande madrassa (escola corânica) para meninas, moças e crianças, todas chamadas Mame Diarra, que memorizaram o conteúdo do livro sagrado do Alcorão.

Mame Diara Bousso é venerada tanto por mulheres quanto por homens, representada como uma mulher piedosa e sagrada. Sob um olhar místico ela é símbolo de regeneração. Também é relacionada ao mar, já que o mar tudo dá, generosa e eternamente. Apreciada igualmente por sua crença na justiça e na pureza.

Ela se consagrou na estória da humanidade como uma mulher que tem a sua própria cidade, uma grande mesquita, um imponente mausoléu (que é visitado por milhões de pessoas por ano), um Magal anual (que atrai centenas de milhares de pessoas), um templo islâmico multifuncional complexo (que acolhe centenas de jovens, todas chamadas Mame Diarra).

Nos eventos dos peregrinos é comum uma atmosfera leve e alegre, onde homens e mulheres realizam as tarefas de cuidado com a casa como forma de acessar ao sacro-poder de Mame Diara, a “santa” mãe.

Na mudança para Porokhane, Mame Diara adoeceu e nunca mais se recuperou totalmente. Por volta de 1855-60 a família retornou para Touba, a cidade sagrada dos mourides, entretanto ela não pôde acompanhá-los por conta de sua doença, falecendo com cerca de 33 anos em Porokhane.

Por isso é que tantos peregrinos caminham perfazendo a rota entre Touba e Porokhane.

fontes:

sokhna mame diarra bousso

lukasa, o tabuleiro da memória

Na Áfrika bantu exite um povo chamado Luba, que desenvolveu um valioso benguê – objeto significativo – chamado Lukasa, que vem sendo zelado de geração para geração, pelos iniciados e iniciadas da Sociedade Mbudye – que usam o tabuleiro lukasa para contar estórias, mediar situações conflituosas na comunidade, bem como realizar curas e prever o futuro, em contextos de rituais espirituais e políticos.

Os membros e membras da Irmandade Mbudye são consideradas “pessoas da memória”, pessoas que devem passar por diversas iniciações e por um extenso treinamento espiritual, que inclui a iniciação na ‘leitura’ do Lukasa.

Cada tabuleiro é diferente, mas pequena o suficiente para ser segurada com a mão esquerda. A Lukasa, que se parece com um quadro (verdadeira obra de arte) é “lida” tocando-se em sua superfície com o dedo indicador direito, como se lê a escrita em braile. As qualidades táteis são aparentes.

A lukasa retratada abaixo é um dos exemplos mais antigos que se tem conhecimento, com desenhos geométricos esculpidos nas costas e laterais, desenhos estes adornados por complexos aglomerados de contas de vários tamanhos, cujas cores foram desaparecendo com o tempo. A prancha é mais estreita no centro, facilitando o manuseio

Lukasa, o tabuleiro da memória/origem: luba/república democrática do kongo/áfrika/período séc. XX/

Conta-se que a irmandade mbudye foi criada em 1700, como um conselho encarregado de preservar e interpretar tanto os sistemas políticos do estado de Luba como a sua estória.

Lukasa, ou quadros de memória, são dispositivos mnemónicos que permitem aos membros da elite desta comunidade recordar informações relativas à genealogia, à cerimónia da corte, aos heróis culturais, às migrações de clãs e à localização das coisas dentro do complexo ou território real e atual. Um lukasanos também podem mapear “capitais espirituais”, palácios de governantes falecidos abandonados por novos reis para se tornarem receptáculos da memória dos antigos reis. Por serem detentores de conhecimentos essenciais para sustentar os rituais e a autoridade real, os membros da Irmandade Mbudye desempenham um papel importante no equilíbrio de poder. A estreita associação do lukasa com o governo é atestada pela parte de trás do tabuleiro, que é esculpido para se assemelhar a uma tartaruga, um símbolo Luba da realeza.

Lukasa, tábua da memória

Lukasa, o quadro de memória pode ser usado para validar o poder de um rei, ou para lembrar ao público como o rei chegou ao poder, ou para falar sobre a sua ascendência. Pode ser usado de muitas maneiras diferentes, é um portal e uma complexa biblioteca de conhecimentos e informações sobre o passado Luba.

Um objeto como o lukasa é uma fusão do visual com o verbal, porque ao olhar para o objeto e tocá-lo, estimula tradições orais que são então recitadas nessas narrativas muito prolongadas que podem lembrar a oratura clássica.
Os oradores clássicos também usaram dispositivos espaciais para lembrar seus discursos. Na verdade, eles se imaginariam movendo-se por um prédio, onde cada cômodo os lembraria de uma parte inteira do passado. Os historiadores da corte de Luba estão fazendo a mesma coisa. Usando este quadro com suas dimensões espaciais e seguindo os contornos das contas – seu código de cores e suas configurações – ele poderia lembrar detalhes de uma história de duzentos anos que seria quase impossível para qualquer outra pessoa fazer espontaneamente a partir do topo. da cabeça deles. Se você visse uma linha de contas na superfície do tabuleiro, isso indicava uma estrada ou uma viagem, talvez algum tipo de viagem ou jornada. Se você visse uma conta cercada por um círculo de contas, geralmente era a designação de uma chefia ou reino. O quadro de memória lukasa permitiu que um historiador da corte ou um rei fosse capaz de contar uma narrativa completa de como a realeza chegou a um determinado local e como os médiuns espíritas preservaram o espírito do poder do rei falecido e como eles prosseguiriam no futuro com todos desta linhagem e ancestralidade por trás deles.” MARY NOOTER ROBERTS, PROFESSORA de CULTURA E PERFORMANCE, UNIVERSITY OF CALIFORNIA, LOS ANGELES

O REINO LUBA
O Reino Luba da República Democrática do Kongo foi uma presença muito poderosa e influente do século XVI ao início do século XX na Áfrika Central. A sua arte destaca o papel que os objetos desempenharam na concessão aos detentores da autoridade da realeza e do poder real.
O povo Luba é um dos povos Bantu da Áfrika Central e o maior grupo étnico da República Democrática do Kongo. O Reino dos Luba surgiu na Depressão de Upemba (uma grande área pantanosa que compreende cerca de cinquenta lagos) no que hoje é o sul da República Democrática do Kongo. Os Luba tinham acesso a uma riqueza de recursos naturais, incluindo ouro, marfim e cobre, mas também produziam e comercializavam uma variedade de bens, como cerâmica e esculturas em madeira.

fontes:

https://www.khanacademy.org/humanities/ap-art-history/africa-apah/central-africa-apah/a/lukasa-memory-board-luba-peoples

http://www.allaroundthisworld.com/learn/africa-2/the-congo-for-kids/congo-and-congo-lukasa-memory-board/

Como a intolerância religiosa afeta os direitos das crianças?, por camilla hoshino

Educação laica e antirracista pode ser uma das chaves para garantir o combate ao racismo religioso e a proteção das crianças de terreiro

artigo escrito por camilla hoshino

21 de janeiro, dia nacional de combate à intolerância religiosa no brasil

“Dia 21 de janeiro marca o combate à intolerância religiosa. Com casos crescentes de agressões a famílias de comunidades tradicionais de terreiro, é urgente discutir os impactos às crianças, buscando caminhos de proteção e garantias ao seu pleno desenvolvimento.

pesar dos 12 anos, Ykharo Miranda de Oliveira impressiona pela força e precisão com que ensaia batuques no balde de plástico, manifestando um gesto ancestral de convite aos Orixás. Talvez a ginga seja herança do pai, que está à frente dos atabaques no terreiro de candomblé Abassá de Xangô e Caboclo Sultão, em Curitiba (PR). Em meio à brincadeira e à alegria da festa, o menino confessa aos mais velhos que quer se tornar promotor de justiça para defender o seu povo. “De onde veio isso?”, questiona o pai de santo Ubaldino Teixeira Bomfim. 

A motivação de Ykharo pode ser comum a de muitas crianças de religiões de matriz africana, que presenciam ataques em seus terreiros ou são vítimas de intolerância religiosa em espaços de convívio, como escolas, pracinhas públicas ou postos de saúde. A pesquisadora da Universidade Estadual da Bahia (UNEB), Paola Odònílé, autora do livro “Nascer do rio: o direito à liberdade religiosa da criança e do adolescente no terreiro de candomblé da Ìyálórìxà Idjemim”, conta que a omissão em casos como esses pode levar crianças ao abandono dos estudos, ao isolamento e à depressão. “A intolerância religiosa viola muitos direitos da criança, entre eles o direito à liberdade, à educação, à saúde, ao lazer e à convivência familiar e comunitária”, afirma. 

Dia de Combate à Intolerância Religiosa Faz 22 anos desde a morte da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, em Salvador (BA). Vítima de atos de racismo religioso após ter sua foto publicada num jornal, Mãe Gilda teve sua casa atacada, seus filhos de santo foram agredidos, e ela sofreu um infarto no dia 21 de janeiro. A data ficou registrada no Brasil como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituída pela Lei 11.635/2007.

O cenário jurídico marcado pela Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), entre outros dispositivos nacionais e internacionais, garante a proteção da criança enquanto sujeito integral, prevendo seu direito à liberdade, tanto de crença quanto de culto. Apesar disso, de acordo com Paola, os mecanismos do poder público ainda são insuficientes para evitar os prejuízos da intolerância religiosa às crianças. “Precisamos do cuidado conjunto entre as famílias, a sociedade e o Estado”, diz. 

Racismo, o componente nuclear da intolerância religiosa

Entre janeiro de 2015 e o primeiro semestre de 2019, o Brasil registrou uma denúncia de intolerância religiosa a cada 15 horas, segundo dados do extinto Ministério dos Direitos Humanos. O balanço do Disque 100 também aponta que os casos de agressão a comunidades tradicionais de terreiro foram crescentes ao longo dos anos. Em 2018, de 506 denúncias, 152 tinham praticantes da umbanda, candomblé ou outras religiões de matriz africana como vítimas, e 261 sem religião informada, o que muitas vezes revela o medo de identificar-se. Como relata o babalorixá e Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela FFLCH-USP, professor Sidney Barreto Nogueira, no livro “Intolerância religiosa”, considerando a invisibilidade, a marginalização e a vergonha de grupos em assumirem ser praticantes de tradições religiosas de origem africana, é possível estimar que 80% do total das denúncias sejam relativas a comunidades tradicionais de terreiro. Ele usa o termo “racismo religioso” para nomear um processo histórico de exclusão e negação dessas religiosidades. 

 “O racismo atua no apagamento de tudo cuja origem for ligada à identidade afro-brasileira”

A pesquisa publicada em 2017 pelo professor e babalorixá Patrício Carneiro Araújo, no livro “Entre ataques e ataques: intolerância religiosa e racismo nas escolas”, não deixa dúvidas de que a vergonha também é uma barreira para a afirmação da identidade das crianças.Ao investigar cinco escolas estaduais em São Paulo, com 315 alunos e 59 professores (374 informantes), ele não encontrou adeptos das religiões de matriz africana, exceto por um aluno da Escola Estadual João XXIII. O que chama atenção é o fato de as escolas visitadas estarem justamente em bairros com terreiros que abrigam grande população de pessoas em idade escolar. 

Racismo religioso nas escolas

As suspeitas de Patrício Araújo vão ao encontro dos relatos apresentados pela doutora em Educação e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Stela Caputo Guedes, autora do livro “Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com crianças de Candomblé”. Para ela, o conceito de intolerância é insuficiente para descrever as agressões às crianças, caso de Joyce de Iemanjá que, aos 13 anos, lhe relatava insultos raciais que recebia na escola por ser iniciada em sua religião. 

“A principal dificuldade é o racismo que leva à ausência de laicidade nas escolas, normalizando a escola branca e cristã, e expulsando as religiões negras”, diz Stela. Para ela, a única forma de garantir escolas livres de discriminação é travar uma luta cotidiana por uma educação antirracista e laica. 

A implementação da Lei ​​10.639/2003, que inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, pode ser um caminho rumo ao respeito às crianças de terreiro. Isso não significa, no entanto, tratar do assunto apenas no mês da consciência negra, em novembro, ou em datas comemorativas. “Precisamos de projetos pedagógicos anuais, que tragam as referências dessa cultura para o dia a dia das salas de aulas, possibilitando que essa educação se expanda para a sociedade”, defende Paola Odònílé. 

Convivência comunitária e rede de apoio

Owó omodé ò tó pepe; ti àgbàlagbà kò wo akèrègbê.” Diz o provérbio yorubáque a mão da criança não alcança uma prateleira alta, mas a mão do adulto não entra pelo pescoço da cabaça. No candomblé, assim como em outras religiões de matriz africana, a criança aprende por meio de relações de cooperação e interdependência com os mais antigos da casa. “Tudo é ensinado em seu tempo”, garante Mãe Nilce de Iansã, coordenadora da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro). 

Do preparo ritualístico das comidas até o xirê, as crianças aprendem mais pela palavra cantada ou pelas brincadeiras que pela escrita, vivenciando o modo de vida africano por meio de uma dinâmica que não atropela as etapas da vida. 

“Repassamos os saberes ancestrais do nosso povo para que as crianças possam proteger os mais velhos e a si mesmas”

A atenção oferecida às crianças é a garantia de sobrevivência das memórias dessa ancestralidade às próximas gerações, bem como de fortalecimento de uma identidade religiosa hostilizada em outros espaços de convívio, como a própria escola. Iyaegbêde uma casa de candomblé com mais de meio século de história, o Ilê Omolu Oxum, no Rio de Janeiro, Mãe Nilce lamenta que muitas crianças ainda tenham vergonha de usar seus fios de conta ou roupa branca na última sexta-feira do mês, em homenagem a Oxalá, ambos símbolos de proteção para a sua tradição. “A intolerância religiosa é um determinante da saúde das crianças”, alerta. 

Para grande parte dessas famílias, o terreiro passa a ocupar um lugar que vai além dos cultos e do ensino religioso, mas de escuta e acolhimento em casos de problemas de saúde, financeiros e até intrafamiliares. Em muitos casos, como relata Mãe Nilce, os “irmãos e irmãs de santo”, iniciados nas casas de candomblé, se tornam rede de apoio para mães solo, vítimas de violência doméstica ou até adolescentes LGBTQIA+ expulsos de casa. 

“O terreiro também acolhe adultos e crianças que estão em situação de risco, orienta e encaminha para algum órgão, quando necessário”

Mãe Nilce enfrenta o cenário crescente de agressões a seu povo como quem carrega uma missão educadora: “Converso com as crianças sobre bullying, racismo e como elas podem se proteger, mostrando sua religião com respeito” – afinal, “mãe” e “pai de santo” não receberam o nome à toa. Para ela, a mensagem esperançosa neste dia 21 de janeiro é a de que combater a intolerância religiosa também significa preservar a vida e o desenvolvimento integral das crianças pertencentes a comunidades tradicionais de terreiro e, sobretudo, evitar o apagamento de uma cultura fundante do país. Dos antepassados aos que ainda estão por nascer, todos somos herdeiros e corresponsáveis pelo dom precioso da vida.”

artigo escrito por camilla hoshino

fonte: https://lunetas.com.br/intolerancia-religiosa/