claveconsciência e a diáspora afrikana

Benguela: Quimbundos, tocadores de Marimba

mo maiê, ilha de itaparica, bahia, 2017

a diáspora do transatlântiko negro criou invisíveis visíveis cordões umbilicais entre a velha áfrika e vários territórios ao redor do mundo, pra onde antepassadxs foram levadxs, depois do grande sequestro. 

o que hoje é o continente afrikano quem sabe talvez até que poderia não ter sido áfrika em sua exuberância, magnificência, em toda sua potência, se tivéssemos por base tudo que foi armado do outro lado… mas a providência divina é tão favorável, que, mesmo que deste continente fossem tirados bons frutos e sementes, devido à represa do tempo conhecida como “NDONGO” (como era chamado em angola o movimento do tráfico, fornecimento de seres humanos capturados tanto nas américas quanto na ásia), sua glória repousa eternamente sobre o solo fértil da terra mãe.

a áfrika foi arrasada depois da chegada dos europeus invasores, que, com sua busca desenfreada por movimentar a roda do comércio, das guerras e da dita religião, provocaram um câncer nas estruturas sociais de povos e civilizações com riquíssima culturas, filosofias, economias, organizações comunitárias, cosmopercepções.

“angola tornou-se o combustível, estando sua vida econômica e comercial mobilizada e baseada na escravidão. tal situação gerou um desequilíbrio econômico naquele país, uma vez que, dele, apenas tirou-se pessoas e produtos, sem que houvesse investimento efetivo no seu desenvolvimento”. (Espaços de Hibridações e de diálogos culturais: o caso bantú . brígida carla malandrino)

Nas embarcações negreiras, o corpo escravizado remava ou se contorcia de banzo. 

Separado à força de sua família e de sua comunidade, Muntu (a pessoa humana) se desfalece, ao ver suas raízes vitais cortadas, decepadas, já que em sua terra vivem fortemente o sentido de comunidade. Só existo porque Tu Existe. Ubuntu. Eu só existe porque você me percebe, me vê, me sente. Tu me percebes, e eu existo.”

“A captura e a separação da família alargada e nuclear desestruturam visceralmente a pessoa de tradição bantú, que perde, nesse momento, a possibilidade de dar continuidade à participação vital, uma vez que foram rompidos os laços de solidariedade vertical e horizontal. Rompendo esses laços, a pessoa tem desfeita a ligação com a participação vital, havendo também a quebra da corrente vital. O ser humano tem, portanto, a sua força vital diminuída. Esgotam-se os motivos pelos quais se vive, uma vez que, dentro da cultura bantú, só se existe pela e na comunidade”. (Brigida Carla Malandrino)

Aqueles SERES arrancados de suas terras, encontraram na cumplicidade do outro e nos movimentos da Música-Dança, uma chispa de força vital (NGOLO), que lhes motivassem a permanecerem vivos.

A travessia forçada pelo oceano Atlântiko (a grande Kalunga) gerou o nascimento de uma grande alkimia – fusão musical, espiritual, política, corporal entre distintas raças e culturas, mesclando para sempre os novos povos, nascidos da hibridação do encontro de sementes vindas de diferentes cantos. 

As sementes filosóficas/artísticas/políticas trazidas dentro de cada corpo, contendo dentro de si códigos genéticos e simbólicos de sua terra matriz, adaptaram-se aos entornos naturais do “Novo Mundo”. Por isso é possível encontrar traços culturais comuns em diferentes países e sociedades americanas.

Christopher Washburne (da Colombia University) cita em um artigo publicado em 1995 na revista “Kalinda! Black Music Research” que: 

“em muitas discussões musicais, estilos de músicas encontradas nas Américas e no Caribe, algumas vezes se referem como procedentes da África. A Salsa não é uma exceção e a seguinte discussão explora o que particularmente é africano nesta música: A Clave!!!, um conceito rítmico encontrado em uma variedade de estilos da América Latina. Similaridades entre o som e a função dos padrões dos instrumentos de ferro africanos (como o gobel ou o agogô) provêm evidências sobre uma teoria das origens da clave e uma conexão evoluída entre a música africana e a salsa”.

Assim como esta conexão entre a música afrikana e a salsa, também existe entre a música afrikana e o samba brasileiro, a cumbia, a música afro-peruana, o candombe uruguayo, etc.

Segundo Letieres Leite, nosso mestre, estes padrões rítmicos são chamados de DNA do ritmo e sua influência vai ser fundamental para direcionar minhas pesquisas sobre a musicalidade/corporeidade afrikana e afro-latina.

Assim, Letieres vem nos falar da “clave-consciência”: 

“Para mim, toda música de matriz afrikana segue um sistema rigoroso de claves. Clave é a menor porção rítmica em que a música gira no entorno. (…) Então eu pensei: Por que não trabalhar a música instrumental a partir dessas ideias? Eu aprendo o ritmo, desconstruo ele, para construir de novo para outros instrumentos poderem tocar”.

Em entrevista para o Programa Passagem de Som, do Sesc São Paulo, Letieres diz que:


“Eu notei que a música instrumental brasileira se focava em dois grandes pólos: o samba e seus derivados e o baião e seus ritmos vizinhos. Eu falo do DNA do Samba, que é a matéria que eu gosto de estudar, que se chama “Sistema de Claves”. A grande abstração da Rumpilezz é promover a transmissão dos desenhos com fidelidade para os instrumentos de sopro e para os instrumentos de base. Eu chamo esse processo de “Universo Percussivo Baiano”. (…) Você pode tocar o samba jazz, o chorinho, pode tocar a bossa nova, bem jazzificada. Eu pensei que eu poderia explorar mais o que eu já conhecia, que era  a música afro-baiana. Aí eu pensei: por que não a música instrumental a partir destas ideias? Em 1984 comecei a colocar essa ideia em prática. A Rumpilezz, na realidade, não foi criada para entretenimento nem para ser uma opção de trabalho. Ela foi criada para provar uma coisa que eu venho defendendo há muito tempo, que é o nível de organização da música percussiva e o nível de estrutura e complexidade que ela tem.”


Brasil foi um grande caldeirão onde se misturaram símbolos de ambos lados da costa do Atlântico (Kalunga).

A concepção do samba se deu ao longo da travessia através da Kalunga. 

Momento em que houve entre os seres/corpos/cidadãos afrikanos a necessidade de sobreviver, de conectar-se a algo que transcendesse a realidade da nova condição imposta, que transcendesse a realidade material da condição de escravizado, algo que conectasse os corpos, os seres “objetificados” de volta à sua condição de ser vivente, de ser mágico, de ser espiritual, filosófico, social.

Assim, o samba nasceu em forma de Música/Dança/Medicina para os filhos da América Afro-ameríndia.

O pulso grave do surdo marca o compasso do corpo do afrikano que tinha que remar para mover os navios, ao compasso da batida do seu coração, cantando canções de sua terra, escutando através das vozes de irmãos e irmãs de outros povos do continente, palavras ditas em outras línguas, que agora se tornavam línguas irmãs.

Assim, depois de ser concebido, o samba sai do mundo espiritual para habitar o mundo físico, quando as embarcações chegam ao Brasil, com os sobreviventes da travessia.

O samba deixa de existir como uma ideia ou uma semente de ritmos e melodias e passa a habitar o mundo da matéria, no ciclo do tempo conhecido como “Kala”, entre os Bakongo.

Aqui a musicalidade dentro de cada afrikano se encontra com a musicalidade do novo mundo. 

Os instrumentos musicais originais são adaptados e viram novos instrumentos, mas em muitos casos, guardam sua estrutura e sua essência. Na América os instrumentos originados da Áfrika foram recriados a partir de memórias, a partir de possibilidades de recursos e matéria prima do Novo Mundo.

Em Kala nasce o samba e vai se adaptando aos novos ambientes.

Como o corpo que dança, o samba vai se adequando ao sotaque corporal de seu próprio vilarejo aos diferentes sotaques de seus parceiros de brincadeira.

A cultura afro-brasileira, em sua essência originária, se harmoniza com as práticas indígenas das Américas. 

Na Música/Dança, por exemplo, é muito comum para ambos os povos danças e cantos circulares e polifônicos, cantos em forma de pergunta/resposta em coros de vozes, uso de palmas e, sobretudo, a consciência da conexão do corpo com os ancestrais e com a terra – a grande matriz geradora da essência da vida.

Tanto para os afrikanos quanto para os indígenas, batucar e dançar é medicina espiritual.

O Samba tem seus ritmos marcados por “Claves” afrikanas e trás em seu interior memórias sonoras e temporais de gerações de afrikanos que atravessaram a Kalunga.

O Samba tem seu ritmo essencial marcado pelo forte pulso nos Navios Negreiros, com seus remos, seus ombros e seus corpos se movendo pelo balanço do mar.
O ritmo marcante e ricamente polifônico da música brasileira é uma de suas principais características. 

Assim, como dito acima, Letieres Leite começou a pensar e a nos fazer pensar sobre a “Clave” da música (seu DNA rítmico), bem marcada em diferentes estilos musicais afro-descendentes. 

Letieres chamou de “Clave-consciência” à busca do músico pela consciência de padrões rítmicos , que marcam diferenças e semelhanças entre estilos musicais.

A “Clave-Consciência” busca que o artista não apenas reconheça tais padrões, mas também incorpore a consciência na execução do instrumento musical durante sua performance.

No Brasil, o samba são muitos sambas. Cada região brasileira vai parir um tipo de samba, com suas especificidades e características. Mas é indiscutível que a cada novo nascimento, o samba trás o poder da resistência e está, geralmente, relacionado ao trabalho. 

O samba nasce nas roças da Bahia – o samba de roda, que tem suas raízes nos cantos, nos lamentos e toques de trabalho de regiões do interior do estado, nas plantações de cana de açúcar e tabaco, ao longo do Recôncavo baiano, entre vilarejos e kilombos, na beira do mar, no trato das baleias, nas festas aos caboclos… 

No Rio de Janeiro, o samba tem suas raízes germinadas de ritmos/manifestações culturais e espirituais como o Jongo, que, por sua vez também deu origem ao ritmo conhecido como o “funk carioca”. 

Posteriormente, o samba se reinventa através das influências de um grupo de baianos que se encontram na casa da Dona Ciata e outras “tias baianas”, que tiveram o papel fundamental de transmitir a cultura popular trazida da Bahia, seja através de práticas de cultos e ritos da tradição afrikanas, seja através do sabor dos quitutes e do teor libertador das festas, reunindo ao seu redor uma vibrante comunidade que, muitas vezes, chegavam a ficar por três dias em festas.

No Nordeste, o samba é o Samba de Côco, que também tem origem relacionada com o trabalho forçado na quebra do Côco, ou no ato de amassar o barro para construir a casa. 

Pessoalmente, encontro uma grande força e influência niger congo no samba matricial.

Dessa maneira, busco encontrar em meu próprio corpo as conexões desativadas entre possíveis caminhos pelos quais atravessaram meus ancestrais em suas próprias travessias pela linha de Kalunga. 

Busco vias de desubstrução, de descolonização deste corpo. Busco maneiras de destroçar as pedras impostas pelos agente dominantes durante esses processos civilizatórios, baseados na exploração e imposição de crenças religiosas, sociais e políticas.

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mo maiê, ilha de itaparica, bahia, 2017

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. fonte: 
– “clave: The African Roots of Salsa.” Kalinda!: Newsletter for the Center for black music Research, Fall (1995): 7-11. Reprinted in Clave (1) 2, (1998): 2-3.
– espaços de Hibridações e de Diálogos Culturais: O Caso Bantú. brígida carla malandrino 

Cabila e Ijexá: Interconexões entre ritmos de duas culturas, por Adrian Estrela

Cabila e Ijexá são Ritmos de Matriz africana que compõem o extenso repertório
musical de diversas nações de Candomblé no Brasil. Segundo Palmeira (2017, p. 33) , “em Salvador, no que se refere aos Terreiros de Candomblé, é possível identificar três principais grandes grupos, conhecidos pela nomenclatura de Nações: Ketu, Jêje e Angola.” Sendo assim, considerando as nações apresentadas acima, os ritmos escolhidos podem ser observados, tradicionalmente, em duas dessas nações: o Ijexá na nação Ketu e o Cabila na nação Angola.
Ambos os ritmos, originalmente executados em cerimônias de Candomblé, extrapolaram o contexto religioso e difundiram-se na música profana brasileira. Embora os instrumentos tradicionais do candomblé sejam predominantemente percussivos (Rum, Rumpi, Lé, Agogô e Gã), podemos observar uma tendência de interpretar ritmos de matriz africana a partir de diversos instrumentos e formações musicais.
Desta forma, o objetivo geral deste artigo é apresentar algumas possíveis conexões os ritmos do Ijexá e do Cabila. Derivado deste, serão apresentados três objetivos específicos: 1) descrever as principais características do ritmo ijexá; 2) discorrer sobre o ritmo Cabila; 3) apontar semelhanças musicais, funcionais e culturais entre os ritmos. Sendo assim, pretende-se responder à questão da pesquisa: em quais aspectos os toques 3 do Cabila e do Ijexá são correspondentes?
Esta pesquisa foi apoiada pelo método bibliográfico que, segundo Fonseca
(2002, p. 32) , “é feito a partir dos referenciais teóricos já analisados, e publicados por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, sites”. Em concomitância, Lakatos e Marconi (2004, p. 183) , explicam que a pesquisa bibliográfica “abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, monografias, teses, material cartográfico etc., até meios de comunicação orais: rádio, gravações em fita magnética e audiovisuais:
filmes e televisão”.
Na construção de uma fundamentação teórica, foram pesquisadas fontes científicas esclarecem sobre conteúdos relacionados a este artigo, tais como: Mauleón (2005), que explica sobre a clave e sua importância na música de matriz africana; e Nigri (2014), que escreve sobre o Cabila e sua relação com a música popular brasileira.
Em Cardoso (2006), foram estudados conteúdos pertinentes aos contextos histórico, cultural e religioso do Ijexá; e em Palmeira (2017), foram encontrados diversos conceitos relacionados à música afro-religiosa na cidade de Salvador – Bahia.
A seguir, serão apresentadas considerações sobre a clave, elemento essencial
para a compreensão da abordagem utilizada neste artigo.
1.1 CLAVE . Claves são padrões rítmicos que funcionam como guia na música de matriz africana. Tradicionalmente, na música afro-brasileira, elas são executadas com o auxilio de um instrumento percussivo de som agudo.
Meneses (2014, p. 146) 4 , afirma que claves são padrões curtos que podem ser
materializados por um instrumento. Segundo ele, as claves também podem estar presentes apenas na consciência dos músicos. Em adição, Kubik (apud MENESES, 2014, p.146), defende que na música afro-brasileira as claves funcionam como “orientação para outras partes da música em sua dimensão temporal”, ou seja, em sua dimensão rítmica.
Graças às raízes africanas, a utilização de claves como referencial pode ser
observado em músicas de diversos países da América Latina, como Venezuela e Cuba.
Assim como no Brasil, na música cubana de matriz africana a clave exerce o importante papel de fundamentar os ritmos executados por todos os instrumentos. Hernandez (2000, p. 11) 5 afirma que a compreensão da música cubana começa com a clave.
Segundo ele: A clave é um ritmo que “serve como ponto de referência para todos os ritmos, melodias, músicas e danças na música cubana. O ritmo da clave está sempre presente na música, mesmo que não esteja realmente sendo tocado” (HERNANDEZ, 2000, p. 11) . Em concomitância, Mauleón 6 (2005, p. 48) defende que no que diz respeito ao estudo da música cubana, “a clave é a primeira célula que deve ser entendida e praticada antes de seguir adiante”.

Clave cabila

2 CABILA. O Cabila ou Cabula é um ritmo de origem Banto, característico da nação de Candomblé Angola. Na execução dos ritmos durante a cerimonia religiosa esse grupo utiliza os tambores sempre tocados com as mãos. Baquetas aguidavís 7 são restritas ao toque do idiofone gã. Tocado tradicionalmente em andamento rápido, o cabila é associado aos inquices 8 Kabila e Roximucumbe e representa um ritmo de compasso quaternário simples.
Assim como outros ritmos de matriz africana o cabila possui uma clave própria
que atende à função de “guia” de todos os ritmos executados.

Figura 1 – Clave Ritmica do Cabila . Fonte: Elaboração do autor.

Graças à circularidade intrínseca à música afro-brasileira que, segundo Scott
(2015,p.13) “constitui em ostinato rítmico sem utilização da acentuação, evitando assim a formatação rígida dos compassos, que criam falsas acentuações e aprisionamento do ‘um’, as claves podem ser utilizadas se iniciando de qualquer ponto”. Deste modo, entende-se que a clave do cabila pode ser invertida, ou seja, iniciada dois tempos após o começo tradicional.

Figura 2 – Clave Rítmica do Cabila Invertido . Fonte: Elaboração do autor.

A partir da circularidade, cabila alcançou destaque na música popular brasileira
através de ritmos e estilos musicais derivados da sua estrutura fundamental. Leite (2017, p. 52) defende que o cabila “estruturou diversos gêneros e subgêneros da música brasileira, especialmente, o samba”. A partir da análise da figura a seguir, é possível notar diversas semelhanças entre a clave do cabila invertido e o partido alto, uma vertente do samba frequentemente encontrado na música popular.

Figura 3 – Clave do Cabila Invertido e o Padrão Rítmico do Samba Partido Alto

Em concomitância com Leite, Nigri (2014, p. 103) , em suas pesquisas e
vivências nos terreiros da nação Angola, ouviu diversas vezes frases como: “a
verdadeira raiz do samba está no candomblé”, “o cabula é o pai do samba” ou, “o samba veio do terreiro.” Segundo Nigri, “o ritmo cabula (…) se apresenta em cantigas que produzem um cantigas que produzem um sentido mais festivo, alegre e (…) apresenta uma proximidade estética ao samba, em termos rítmicos e também quanto ao sentido festivo, de alegria, festa, vadiação que ele carrega. (NIGRI, 2014, p. 103). Assim como diversos ritmos afro-brasileiros, o ijexá é um ritmo complexo e para sua execução são necessários três tambores atabaques (rum, rumpi e lé) e um idiofone metálico (gã). A clave do cabila é executada pelo gã; o lé e o Rumpi mantem ritmos particulares e constantes; e o Rum é responsável por executar variações rítmicas.

Figura 4 – Partitura Rítmica do Cabila. Fonte: elaboração do autor

Na figura acima, a representação do ritmo executado pelo Rum refere-se a um
padrão que, segundo José Izquierdo (informação verbal 9 ), é frequentemente executado em meio a outras frases características.
3 IJEXÁ . O Ijexá é um ritmo de matriz africana tocado nas cerimonias de candomblé que atingiu grande repercussão na música profana brasileira. Segundo Cardoso (2006, p. 351) , a palavra ijexá também denomina uma região do continente africano onde o culto ao orixá Oxum é muito relevante, e graças a isso, o ritmo do Ijexá foi incorporado às cerimônias religiosas do candomblé para saudar essa divindade. Entretanto, conforme Iuri Passos (Informação Verbal 10 ), apesar de ser frequentemente associado a Oxum, o toque também é utilizado para reverenciar outros Orixás como Logun Ede, Ogum e Oxaguiã.
Na cidade de Salvador, apesar de ser predominante encontrado em terreiros da
nação Ketu, o Ijexá costumava ser identificado em terreiros da nação de Candomblé que compartilhava o mesmo nome. Conforme Cardoso (2006, p. 351) , nesta nação o Ritmo Ijexá era “quase que exclusivo, […] com esse toque se homenageavam todas as divindades”. Contudo, de acordo com Lüning (1990, p. 178) , por volta da década de 1980, graças ao falecimento da sua principal liderança religiosa, deixou de existir um dos últimos grandes terreiros da nação Ijexá.
O ritmo do Ijexá, que tem origem Iorubá, saiu do cenário religioso e alcançou a
música popular através dos Afoxés 11 . Becker (2014, p. 22) , afirma que “os afoxés surgiram como uma necessidade das pessoas frequentadoras dos terreiros de candomblé de participar do carnaval com sua música própria”. O autor relata que devido à estreita relação, o afoxé e o ijexá muitas vezes são confundidos entre si e que muitos músicos, erroneamente, costumam referir-se ao ritmo Ijexá pelo nome de Afoxé (BECKER, 2014, p. 24) .
Assim como o Cabila, o Ijexá é um ritmo complexo, executado, tradicionalmente, por quatro instrumentos: agogô, que é responsável por executar a clave; Lé e Rumpi, que executam ritmos próprios e constantes; e o Rum, que executa variações rítmicas.
Em adição, nos afoxés é frequente a execução da pulsação métrica regular com o auxilio do instrumento percussivo caxixi. A Figura 5 apresenta uma representação dos padrões rítmicos constantes no ijexá.

No Ijexá, assim como no Cabila, todos os membranofones são tocados apenas
com as mãos, ficando o uso do aguidaví restrito à execução do agogô. Diferentemente ao que costuma ser praticado em diversos toques da Nação Ketu como o Agueré, (onde todos os instrumentos são interpretados com Aguidavís), e o Batá (onde apenas o Rum é executado sem baquetas), o Ijexá compartilha algumas outras características com o toque do Cabila, como será demonstrado a seguir.
4 RITMO IJEXÁ E RÍTMO CABILA – SEPARADOS POR ¾ DE TEMPO. Como mencionado anteriormente, as nações de Candomblé que abrigam os toques do Ijexá e do Cabila, são distintas e formadas por povos provenientes de
diferentes regiões africanas, sendo o Cabila de origem Banto e o Ijexá de origem Iorubá.
De acordo com Nigri (2014, p. 23) , grosso modo, é possível classificar os povos
africanos em dois grandes grupos, os Sudaneses e os Banto. Segundo o autor “essa divisão se dá por meio do tronco linguístico, entretanto são centenas de dialetos catalogados entre esses grandes grupos”. Conforme Prandi, “Os sudaneses constituem os povos situados nas regiões que hoje vão
da Etiópia ao Chade e do sul do Egito a Uganda mais ao norte da Tanzânia. […] abaixo, o grupo sudanês central, formado por inúmeros
grupos linguísticos e culturais que compuseram diversas etnias que
abasteceram de escravizados o Brasil, sobretudo os localizados na região do Golfo da Guiné e que, no Brasil, conhecemos pelos nomes genéricos de nagôs ou iorubás (mas que compreendem vários povos de língua e cultura iorubá, entre os quais os oyó, ijexá, ketu, ijebu, egbá, ifé, oxogbô, etc.). […] Os bantos, povos da África Meridional, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as terras que vão do Atlântico ao Índico até o cabo da Boa Esperança”. (PRANDI, 2000, p. 53) Apesar das distinções geográficas, culturais e linguísticas entre as nações de Candomblé Ketu e Angola, no que refere-se à relação entre notas percutidas e pausas nas claves do Ijexá e do Cabila, existe um padrão é comum à execução dos dois ritmos, podendo a mesma performance ser compreendida como ambos os toques, a depender do referencial escolhido. Para demonstrar essa propriedade, a seguir serão apresentadas e comparadas as claves dos dois ritmos através da escrita musical tradicional e de uma notação baseada na escrita musical datiloscópica, em que são apresentadas as subdivisões do tempo onde há e onde não há ataque ao instrumento. A seguir, a clave do Ijexá, escrita de ambas as formas.

claves rítmicas do ijexá, em duas formas de representação gráfica. fonte: elaboração do autor

Note que, embora apenas as notas representadas pelos pequenos círculos pretos
devam ser executadas, na representação da direita estão representadas todas as unidades básicas de medida, sendo os “x” responsáveis pelas representações das pausas. Neste sentido, uma vez que na escrita musical da esquerda não há diferenciação entre ataques na campana grave ou aguda do agogô, as duas imagens representam exatamente o mesmo ritmo.
Seguindo o mesmo princípio, a seguir será apresentada a clave do Cabila em
suas duas formas de escrita.

Figura 7 – Clave rítmica do Cabila em duas formas de representação gráfica

Assim como na Ijexá, na partitura da direita, estão representadas todas as
subdivisões do ritmo (referenciadas na nota de menor duração), porém, devem ser percutidas apenas as notas representadas círculo preto. Portanto, os dois sistemas representam exatamente o mesmo ritmo: a clave do Cabila.
As partituras apresentadas até o momento demonstram apenas um ciclo
completo de cada toque, sendo os ritornelos a indicação de que o padrão pode ser repetido indefinidamente. Sendo ambos quaternários e tendo como nota de menor duração a que equivale a um quarto da pulsação, tanto o Ijexá quanto o Cabila completam e reiniciam seus ciclos a cada quatro tempos ou dezesseis unidades básicas de medida, conforme representação a seguir:

Figura 8 – Pulsações na Clave do Ijexá em duas formas de representação gráfica. elaboração do autor

Nos exemplos acima, os números coincidem com a pulsação dos seus
respectivos ritmos, porém, a execução da clave independe da presença da pulsação. Sendo assim, para notarmos a equivalência na relação entre pausas e notas percutidas nas duas claves, tomaremos como referência a clave do Ijexá. No entanto, diferentemente do procedimento realizado na figura 8. onde a contagem de tempos foi iniciada na partir da primeira nota, a figura 9 assinalará os quatro tempos do ciclo a partir da quarta nota escrita na partitura.

Figura 9 – Pulsações deslocadas na clave do Ijexá. elaboração do autor

É importante notar que, mesmo não começando a contagem a partir da primeira nota, foi respeitada a relação de quatro unidades básicas de medida entre um pulso e outro. A partir da configuração apresentada pela figura acima e a sua comparação com a figura 7 é possível notar claramente a semelhança entre as claves do Ijexá e do Cabila, pois, uma vez que começamos a pulsação métrica regular na quarta subdivisão do primeiro tempo do toque do Ijexá, encontramos o ritmo do Cabila.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS . O Ijexá e o Cabila são ritmos quaternários executados para homenagear divindades de diferentes nações de candomblé, porém, estes compartilham algumas semelhanças no que diz respeito às suas funções nos cultos religiosos, à relação entre sons e silêncios de suas claves e às divindades para a quais eles são executados.
Em ambos os toques, os membranofones são executados apenas com as mãos, ou seja, sem a presença de aguidavis. Esse princípio sempre é respeitado nas execuções da nação Angola, porém, na nação Ketu, na performance do vassi, por exemplo, o rumpi, o lé e o rum são executados com auxílio de baquetas. Em adição, durante as cerimônias religiosas, ambos os ritmos são executados para louvar divindades relacionadas à guerra: Ogum (Orixá da nação ketu) e Roximucumbe (Inquice da nação Angola).
No tronco linguístico Banto, frequentemente é observada uma grande variedade
de palavras que se referem à mesma divindade. Previtalli (2009, p.56) afirma que nos terreiros na nação Angola o inquice Roximucumbe também pode ser denominado de Incossimucumbe, Mungongo, Sumbo, Munganga, Incossi, Sumbo, Cangira, Tabalanjo, RoxiMarinho Kitaguaze, Minicongo, Mucongo, Naguê, Mugomessá, Jamba,Ngo, Mavalutango, Katembo, entre outros. Ainda segundo a autora, graças ao sincretismo, existem correspondências entre os orixás das culturas Iorubás e os Inquices das culturas Banto. Nesse sentido, a pesquisadora afirma que mesma entidade “ora é inquice, ora é santo e ora é orixá”. (PREVITALLI, 2006, p. 139) . Isto posto, ela afirma que o orixá Ogum, equivale ao inquice Incossimucumbe.
Como demonstrado anteriormente, além das correspondências relacionadas à função e à forma de execução, a clave de ambos os ritmos compartilham as relações entre notas percutidas e pausas, podendo uma mesma performance ser compreendida como Ijexa ou Cabila. Tal princípio, demonstra que as suas claves intercambiáveis.
Sendo assim, apesar de todas as diferenças culturais, religiosas, linguísticas e geográficas encontradas na origem desses dois toques, o Cabila e o Ijexá compartilham características na estrutura mais fundamental de suas execuções: a clave. Acredito que essa simples propriedade pode guiar não apenas para inovações no campo da criatividade e composição musical, mas também para novos caminhos que guiem para uma melhor compreensão histórica e antropológica de culturas de origem africana, bem participação destas na formação da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
BECKER, A. Proposta de treinamento para a improvisação através da rítmica do ijexá. 88 f. Tese (Doutorado em Música) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2014.
CARDOSO, N. N. A. A linguagem dos Tambores. 2006. 256 f. Tese (Doutorado em
Etnomusicologia) – Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2006.
FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Universidade Estadual do
Ceará. Fortaleza. 2002.
HERNANDEZ, H. Conversations in clave: the ultimate technical study of four-way independence in Afro-Cuban rhythms. Miami: Alfred Music Publishing, 2000.
LEITE, L. Rumpilezzinho Laboratório Musical de Jovens: Relatos de uma experiência. 2017 96 f. LeL Produção Artistica, Edição 1, Salvador, 2017
LÜHNING, A. A Música no candomblé nagô-ketu: estudos sobre a música
afro-brasileira em Salvador–Bahia. Tese (Doutorado em Etnomusicologia) – Karl Dieter Wagner, Hamburgo,1990.
MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Metodologia Científica. 306 f 4. ed. São Paulo:
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MAULEÓN, R. Salsa Guide Book: for Piano & Ensemble. 1993. 259 f. Sher Music Co.; Spiral edition, 2005.
MENESES, J.D.D. Orkestra Rumpilezz: Musical Constructions of Afro-Bahian Identities. 266 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – University of British Columbia, Vancouver. 2014.
NIGRI, B. O Samba no Terreiro: música, corpo e linguagem como prática cultural – apontamentos para o campo do lazer 134 f. Dissertação (Mestrado em Lazer) – Universidade Federal de Minas Gerais – Belo Horizonte, 2014
PALMEIRA. R.S. Ritmos do candomblé Ketu na bateria: adaptações dos toques Agueré, Vassi, Daró e Jinká, a partir das práticas de Iuri Passos. 118 f. Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
PRANDI, R. Revista Usp. De Africano a Afro-Brasileiro: Etnia, Identidade, Religião. São Paulo: SCS/USPIdioma, v.46, p. 52-65, jun./ago. 2000.
PREVITALLI, I. M. Candomblé: Agora é Angola. 154 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2006.